Artigo: AI-5, conservadorismo brasileiro e estupidez

Por Mylla Sampaio

Por aqui os pretensos arautos do conservadorismo acham razoável que medidas revolucionárias, como o rompimento da ordem democrática vigente, sejam tomadas sob quaisquer pretextos

As declarações do deputado federal Eduardo Bolsonaro, de que se manifestações semelhantes às que ocorrem no Chile tomassem as ruas do Brasil seria necessário que o governo adotasse medidas drásticas como “um novo AI-5”, não somente são mais um exemplo do descarado autoritarismo com que os membros dessa família flertam, como também um atestado da estupidez e um demonstrativo do rasteiro nível intelectual dos que exercem funções políticas nesse país.

João Pereira Coutinho, no livro “As ideias conservadoras”, explica que há uma diferença substancial entre o conservadorismo e o reacionarismo: enquanto o reacionário é uma caricatura de um revolucionário ao avesso, alguém com inclinações a rupturas abruptas para retornar a um passado utópico; o conservador é, naturalmente, um antirrevolucionário e antiutópico que valoriza o presente, embora o passado e o futuro sejam tentadores, e que se manifesta apenas quando os fundamentos da sociedade são ameaçados.

Essa distinção é muito importante para a constatação de que o que saiu das profundezas do inferno para emergir no Brasil não foi o conservadorismo civilizatório (sim, a única expressão possível é civilizatório, pois embora existam diferenças consideráveis entre conservadorismos de tradição anglo-saxã e ibérica, nem um nem outro se manifestam neste país) que tomou conta das principais pautas políticas, mas sim um reacionarismo dos mais vulgares e desprezíveis, mais uma das jabuticabas que só têm nacionalidade brasileira. Se na Inglaterra, por exemplo, Churchill, uma das maiores referências do conservadorismo no país, é autor da célebre frase “a democracia é o pior dos regimes políticos, mas não há nenhum sistema melhor que ela”, por aqui os pretensos arautos do conservadorismo acham razoável que medidas revolucionárias, como o rompimento da ordem democrática vigente, sejam tomadas sob quaisquer pretextos. Basicamente, essa é a diferença entre uma tradição política e intelectual baseada em Burke e uma baseada em Olavo de Carvalho.

Roger Scruton, por sua vez, em “Como ser um conservador”, afirma que o conservadorismo está mais próximo de ser um sentimento inerente a qualquer ser humano que uma ideologia propriamente dita. É a consciência de que as coisas admiráveis que nos chegam como bens coletivos (a paz, a liberdade, a democracia, etc.) são construídas com muita dificuldade, mas são frágeis e facilmente destruídas, por isso merecem proteção e forte disposição humana para que sejam preservadas.

E, se o conservadorismo, como propõe João Pereira Coutinho e Roger Scruton, se apresenta quando os bons pilares que possibilitaram o estágio atual da sociedade estão ameaçados de ruir, seria este um momento absolutamente propício para que os autênticos conservadores – aqueles que não são estranhos ao amor e ao afeto por tudo o que foi construído até agora, bem como compreendem que a democracia liberal foi o único regime que sobreviveu aos testes do tempo (Oakeshott), aqueles que reconhecem a falibilidade humana para propor soluções perfeitas para problemas complexos (Quinton), aqueles que negam a prevalência de um único valor sobre todos os demais que compõem a pluralidade social (Kekes) e, por fim, aqueles que desprezam as violências redentoras (Razzo) – se insurgissem contra essas aberrações cognitivas, ideológicas e humanas que se estabeleceram no país e, como um câncer em estado avançado de metástase, precisam ser excluídas do cenário político para que não causem danos irremediáveis a vidas e às instituições.  

Nesse sentido, cumpre salientar que imunidade parlamentar não impede a punição de um congressista, desde que promovida pela Casa a qual pertença. As instituições, principalmente a mais violentada pelo AI-5 (o Congresso Nacional), precisam reagir às ameaçadas que lhes foram feitas.

Mylla Sampaio é Mestranda em Direito e Instituições do Sistema de Justiça na Universidade Federal do Maranhão e escreve toda sexta-feira para A Carta Política

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