Energia renovável no Brasil está ameaçada

Editorial*

O Brasil já tem uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo, mas há motivos os mais diversos para que o país incentive o uso de energias renováveis, como a solar, a eólica ou a biomassa. Não se trata apenas do aspecto ambiental, tão lembrado nos dias que correm e certamente relevante, mas também de garantir a energia de que o país necessita para um crescimento econômico duradouro. No entanto, o setor de geração distribuída de energia renovável, no qual pequenos produtores geram a própria eletricidade, mal deu seus primeiros passos no Brasil e já está diante de um desafio que pode inviabilizá-lo.

Atualmente, indivíduos ou empresas que geram a própria energia – seja solar, eólica ou por meios como usinas de biomassa e Centrais Geradoras Hidráulicas (CGHs, hidrelétricas de porte ainda menor que as PCHs) – recebem o crédito integral da energia excedente que geram e lançam na rede. Há partes do dia em que uma residência, comércio ou fábrica produz mais energia do que consome, e essa sobra fica disponível para os demais consumidores. Em outros horários, quando a produção é menor que o consumo, essas casas ou estabelecimentos usam a energia da rede para terminar de suprir suas necessidades. Essa troca é feita na base do “um para um”: a quantidade de energia lançada na rede nos momentos de produção excedente dá direito ao uso da mesma quantidade de energia da rede, sem custo, nos momentos de produção baixa. Este modelo, previsto na Resolução Normativa 482/12 da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), foi desenhado de forma a incentivar a adoção e o uso das energias alternativas. Desde 2015 já se sabia que haveria uma revisão do modelo neste ano, mas a proposta que a Aneel passou a defender recentemente pegou o setor de surpresa.

Depois de dois anos de discussões muito transparentes a respeito de uma nova política de créditos e incentivos, e que se encaminhavam para um desfecho aceitável para a maioria dos players do setor de geração distribuída, a agência reguladora adotou uma postura fechada ao diálogo e, em outubro, se apegou a uma proposta radical: uma sobretaxa de até 68%, significando que os créditos de energia a que os produtores-consumidores teriam direito cairiam de 100% para apenas 32%. Para quem já está no ramo, as regras atuais (ou seja, o crédito integral) continuariam valendo até 2030; para os que instalassem seus sistemas a partir da publicação das novas regras, a aplicação da sobretaxa de 68% seria imediata no caso da “geração remota”, uma das modalidades da geração distribuída, em que a unidade consumidora está distante da unidade produtora.

Até outubro, o consenso que vinha sendo construído apontava para uma sobretaxa bem menor, considerando a razoabilidade de se remunerar as empresas de distribuição – afinal, esses produtores-consumidores continuam necessitando da rede, seja para enviar, seja para receber energia. Além disso, havia a consciência de que aqueles que já instalaram seus sistemas de geração deveriam continuar a trabalhar pelas regras atuais por cerca de 25 anos, que é a vida útil dos equipamentos. A agência reguladora fez terra arrasada de todo esse processo de diálogo ao tirar da cartola um prazo sem base em critérios técnicos – do qual admite poder abrir mão, após reunião com representantes do setor, na quarta-feira, na Comissão de Infraestrutura do Senado – e ao promover uma sobretaxa que, embora constasse dos cenários apresentados no início das discussões, não estava sendo levada a sério por nenhuma das partes envolvidas.

Essa guinada vem contando com forte apoio do Ministério da Economia, que alega a necessidade de combater o que chegou a chamar de “privilégios de um determinado segmento”, em apresentação divulgada em seu site, acrescentando que “se é verdade que a mini e microgeração distribuída é eficiente e representa o futuro, não carece de subsídios: conseguirão ocupar o mercado por mérito”. Por mais que o combate a subsídios esteja efetivamente de acordo com a pauta liberal defendida por Paulo Guedes, a maneira escolhida pelo ministério e pela Aneel vai na contramão das políticas liberais, pois terá como efeito a concentração do setor e a eliminação da concorrência no ramo de geração e distribuição de energia. A argumentação ignora que a produção de energias alternativas ainda engatinha no país e tem custos altos, embora decrescentes, e que, mesmo dentro de uma perspectiva liberal, é possível ao Estado optar pelo incentivo a certa atividade ou vocação econômica que considere importante e necessária para o desenvolvimento e o bem comum.

No caso brasileiro, é especialmente relevante o caráter incipiente do setor de geração distribuída. Outros países e regiões começaram a impor sobretaxas maiores apenas quando a atividade se consolidou – na Califórnia, por exemplo, o modelo foi alterado quando a geração distribuída de energia solar chegou a 5% da matriz elétrica local, e as regras foram mantidas indefinidamente para os produtores que já haviam instalado seus sistemas. No Brasil, apenas 0,2% dos consumidores usam o sistema de créditos por também produzirem energia por meio de fontes renováveis alternativas.

Se o modelo defendido pela Aneel e pelo Ministério da Economia for implantado, um setor nascente, com benefícios mais que evidentes e enorme potencial gerador de emprego e renda, estará praticamente inviabilizado. Muitos planos de investimento em energia renovável serão encerrados diante de prazos inviáveis de retorno e da insegurança regulatória criada por decisões tomadas sem diálogo e sem critério. A única previsibilidade que haverá nesta atividade será a convicção de que não valerá a pena investir na produção de energia.

Em 2012, a então presidente Dilma Rousseff editou a Medida Provisória 579, que, ao tentar reduzir na base da canetada os preços da energia, desorganizou completamente o setor elétrico nacional e criou uma conta que o consumidor brasileiro paga até hoje. A revisão das regras para a geração distribuída nos termos desejados pela Aneel terá potencial destrutivo idêntico ou maior sobre esta atividade, dado o seu caráter ainda nascente. Até o presidente Jair Bolsonaro já se pronunciou sobre o tema, dizendo que “taxar o sol já vai para o deboche” – por mais que a expressão seja tecnicamente imprecisa, já que o centro da discussão está nos subsídios e não na tributação, ela dá alguma ideia do que está em jogo. O governo, no entanto, não tem ingerência sobre a Aneel; cabe à agência, que realizará audiência pública no próximo dia 7, desistir do contrassenso e preservar uma atividade de enorme impacto positivo, econômica e ambientalmente.

Este é um editorial da Gazeta do Povo – 04/11/2019

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