Opinião: O que os intelectuais não entenderam sobre a música “Caneta Azul”

Por Paulo Polzonoff Jr.

Enquanto o Brasil inteiro repete o refrão grudento do improvável sucesso “Caneta Azul”, de Manoel Gomes, a intelectualidade ou dá as costas para o fenômeno popular ou, como o poeta e showman Fabrício Carpinejar, se ressente do alcance da música. Numa série de tuítes publicados na quarta-feira (30), ele idealiza um país onde as pessoas ignoram as rimas pobres de Manoel Gomes e celebram a obra de grandes nomes do cânone literário brasileiro.

Fabrício Carpinejar: “a inveja não traz felicidade, só quer estragar a felicidade do outro para todo mundo ficar igualmente triste”.

Depois de dizer “acho que nunca mais vou escrever com uma caneta azul na minha vida”, o poeta, famoso por seus aforismos dadaístas que afetam falsa profundidade, muitos deles escritos – com canetas azuis – em guardanapos, Carpinejar disse que ficaria feliz se um poema de Ferreira Gullar “fosse tão disseminado quanto a música ‘Caneta Azul’”. O poema, longe de ser o melhor do poeta, é o seguinte:

mar azul

mar azul marco azul

mar azul marco azul barco azul

mar azul marco azul barco azul arco azul

mar azul marco azul barco azul arco azul ar azul

Gullar, aliás, costumava dizer que um dos momentos altos de sua vida foi quando, de volta ao seu estado-natal (o mesmo Maranhão de Manoel Gomes) depois de ter sido eleito para a Academia Brasileira de Letras, foi recebido aos gritos de “poeta”. O reconhecimento popular foi, para ele, mais importante do que o Nobel (ao qual ele foi indicado) ou qualquer outra honraria dada por seus pares.

Adiante, Carpinejar se pergunta “que país seríamos?” se o soneto do pernambucano Carlos Pena Filho fizesse tanto sucesso quanto aquela música que, tenho certeza, você está cantarolando agora mesmo, ao ler este texto. No poema de Pena Filho, lê-se:

“Então, pintei de azul os meus sapatos

por não poder de azul pintar as ruas,

depois, vesti meus gestos insensatos

e colori as minhas mãos e as tuas.”

Por fim, o showman, autor de aforismos açucarados como “Relações passageiras trazem sempre melancolia, como aquelas roupas usadas uma única vez”, diz imaginar o “esplendor cultural” de um mundo inteiro que recitasse o poema “Infância”, de Paulo Mendes Campos, com a mesma “intensidade” daquela música que não sai da nossa cabeça.

“O melhor texto li naquele tempo,

Nas paredes, nas pedras, nas pastagens,

No azul do azul lavado pela chuva”

Decadentismo reacionário

A verdade é que todo poeta contemporâneo sonha em recuperar a popularidade que a poesia teve num tempo sem rádio, televisão, cinema e Internet. Num tempo em que as pessoas frequentavam saraus, as mulheres usavam anágua, todo mundo sabia tocar piano – mas faltava comida na mesa e um simples abcesso bucal era capaz de matar uma pessoa.

Esse decadentismo reacionário é um dos casos raros em que intelectuais de esquerda e direita se encontram animadamente, no meio da rua mesmo, para falarem daquele “tempo bom”, de como “antes era melhor” e “tudo hoje é uma porcaria”, entre outras coisas.

A maioria dos poetas contemporâneos (sim, eles existem!) preferiu não se manifestar sobre a popularidade de Manoel Gomes, que há não muito tempo seria exaltado pela esquerda como uma “potência disruptiva das amarras elitistas da poesia”. Ao ceder aos encantos do decadentismo reacionário (ou reacionarismo decadente?), contudo, Carpinejar acabou por revelar aquilo de que todos desconfiavam: a elite intelectual, aquela mesma que vive a exaltar o pobre camponês e operário como futuro da nação, no fundo (e às vezes na superfície mesmo) se ressente quando o camponês e operário idealizados resolvem dar vazão à sua estética de uma simplicidade quase bárbara.

Talvez o desejo de Carpinejar de se tornar um poeta respeitado pela crítica e pelo público seja maior do que o de seus pares. Ou talvez ele seja apenas mais desavergonhado do que os outros poetas. No início da carreira, por exemplo, Carpinejar escreveu ao menos dois livros que tinham poemas muito melhores do que os de Ferreira Gullar, Pena Filho e Paulo Mendes Campos que ele cita como exemplo de bons poemas com a palavra “azul”. Mas a sereia da fama lhe cantou uma melodia ainda mais grudenta do que a de “Caneta Azul” e, compreensivelmente, Carpinejar não resistiu. Por mais popular que ele seja hoje, seus versos jamais foram motivo de discussões no ponto de ônibus – algo que Manoel Gomes conseguiu com três versos de quatro sílabas poéticas, arrematados por uma redondilha maior.

Não é fácil lidar com isso. Uma saída é idealizar uma fantasia na qual as pessoas saem por aí recitando poemas semiconcretos como o de Gullar. Outra é encarar a realidade de frente e tentar entender por que uma musiquinha tão boba encontra ressonância entre 200 milhões de pessoas. A terceira alternativa é recorrer a um dos muitos aforismos carpinejanianos sobre inveja, como “inveja é tentar destruir o que você gostaria de ter construído” ou o meu preferido neste contexto: “a inveja não traz felicidade, só quer estragar a felicidade do outro para todo mundo ficar igualmente triste”.

Iluminismo que cega

Por mais irritante que seja e é, “Caneta Azul” é também uma poesia que, para além de Gullar, Pena Filho e Paulo Mendes Campos, capta a essência do tempo em que foi escrita. Um tempo marcado, sim, pela anti-intelectualidade, isto é, pela rejeição a poetas que, do alto da proverbial torre de marfim ou em meio a livros embolorados, se acham no direito de dizer o que é belo ou não. Vale notar que esse anti-intelectualismo é justamente a realização da liberdade estética total defendida pela esquerda paulofreiriana.

Este é um tempo também marcado pelo barbarismo, expresso pela violência física, verbal e, no caso da música de Manoel Gomes, sonora. É um barbarismo muitas vezes explícito, mas, no caso da “Caneta Azul”, disfarçado de simplicidade; um barbarismo que se espalha pelos celulares, que abre caminho pelas ondas sonoras, que chega aos nossos ouvidos e nos fere. Que não permite escapatória.

Mas é também um tempo de abundância e, por mais paradoxal que possa parecer a Carpinejar e outros intelectuais, de vitória do Iluminismo, com sua democratização extrema da informação – uma luz que chega a cegar os olhos mais sensíveis. Ora, não era isso o que a esquerda sempre quis? Que um senhor de Balsas, no interior do Maranhão, fosse capaz de escrever uma música de sucesso, expressando a alma inquestionavelmente pura, bela, rousseauniana do camponês historicamente oprimido?

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