“Que comam carne em casa com seu dinheiro”, diz promotora que instituiu cardápio vegano em escolas

Há mais de um ano, no empoeirado sertão da Bahia, escolas públicas de quatro municípios, ranqueados entre os IDHs mais baixos do estado, estão, progressivamente, se “tornando” veganas.

Mas a iniciativa, pouco compatível com a realidade local, não parte das próprias cidades, é uma diretriz do Ministério Público baiano, estabelecida em 2018, após os municípios serem alertados e “convidados” a assinarem um termo de ajustamento de conduta. Isso, sobretudo, em prol da sustentabilidade. Na prática, as escolas estão retirando carnes, ovos e leite do cardápio escolar. Em troca, oferecem aos estudantes, carentes, em sua grande maioria, pasta de amendoim, pão vegano, carne de soja, entre outras receitas.

Em um futuro muito breve, o órgão pretende retirar da alimentação escolar não apenas 40% (como é hoje), mas 100% de qualquer fonte de proteína animal de 154 unidades escolares de 4 municípios – Serrinha, Teofilândia, Biritinga e Barrocas.

Quando questionada pela reportagem sobre o que farão as famílias e crianças que, eventualmente, não concordarem com a adesão total ao cardápio vegano, a promotora Leticia Baird, criadora do programa, afirmou, em entrevista à Gazeta do Povo por telefone, que elas devem comer carne “em casa com o seu dinheiro, pois aqui estamos falando de recurso público”. Ao final da entrevista, ela disse que temia que sua fala fosse colocada fora de contexto. Para a segurança da promotora, a conversa está disponível aqui.

Em vídeos disponíveis no Youtube, é possível observá-la atuando em defesa dos animais, além de alertar, como uma ativista, os moradores da região pobre quanto ao “perigo quase irreversível” de dejetos de matadouro que caem na água ou no solo. Ao Washington Post, ela, nascida no Mato Grosso do Sul, também contou que, na Bahia, “encontrou uma culinária baseada em raízes, e que todos os nutrientes que ela precisa estão nos vegetais, além de estar tentando cortar o glúten”. Essa “notícia”, ela queria compartilhar com os outros.

“Se uma alimentação à base de vegetais é mais barata financeiramente, custa menos para o meio ambiente e fornece igual suporte nutricional, por que o governo vai ter que comprar carne?”, defende. “Aquecimento global tá aí, emissão de gases do efeito estufa está aí, e qual é hoje a maior fonte de degradação ambiental atrelada a aquecimento global e gases poluentes? Sistema de produção alimentar”. O programa tem apoio da ONG Humane Society International, que advoga pelas causas ambientalistas.

Ao Washington post, Ariane Souza Santiago da Silva , diretora do Conselho de Alimentação Escolar de Serrinha, disse que o programa “não foi uma escolha, mas uma imposição, não houve debate público, nem votos, apenas um anúncio de que as coisas iriam mudar”.

Proteína animal “não é obrigatória” e custa mais

Foi compatibilizando pontos isolados da Constituição e outras diretrizes que o MP instituiu o programa Escola Sustentável. E, a partir dessa análise, o órgão entendeu que o melhor a se fazer, para, sobretudo, preservar o meio ambiente e atuar contra obesidade, colesterol, pressão alta, além de fomentar agricultura familiar da região, seria adotar o que chama de “ciência moderna”.

“Modernamente, as entidades de pesquisa mais renomadas, inclusive The Lancet, que é a maior revista de publicação de medicina hoje no mundo, é muito antiga, Harvard, Stanford, Oxford, promovem esse tipo de alimentação”, disse. Um cardápio vegano nas escolas, ela garante, provoca melhorias na “qualidade da alimentação escolar, prevenção de doenças e melhor gestão de recursos públicos financeiros”.

“Não há na nossa legislação nenhuma norma que obrigue que a fonte seja de origem animal (…) os únicos itens obrigatórios são frutas e hortaliças. Não existe obrigatoriedade, não fala que é obrigatório usar ovo, leite, queijo, não existe”, continua.

No entanto, o próprio Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que se opõe à iniciativa, estabeleceu, em 2018, a obrigação de que o cardápio escolar ofereça aos alunos proteína animal (carne, leite, ovos). Desafiando o órgão, Letícia disse que “isso foi já em 2018, quando o programa já tinha sido lançado, então não há norma, não há lei”.

Ela sugere pensar no outro lado: “E uma criança que seja vegetariana, se ela for comer hoje na escola, vai ter arroz com charque. E aí? Ninguém pensa o outro lado?”. Ao mesmo tempo, porém, ela afirma que “estamos falando de gestão de recursos públicos, e não de preferências ou hábitos, recurso público precisa ser administração imparcial”, mesmo com uma alimentação escolar 100% vegana.

“Se carne custa mais em termos financeiros, se custa mais em termos para o meio ambiente, e se igualmente [a alimentação vegana] oferece suporte nutricional e de saúde, por que não utilizar, se se mostra com melhor custo benefício?”, defende. “O custo ambiental de alimentos de origem animal é muito alto. Você sabe quanto se gasta para se produzir um bife de 150 gramas? Em média, dois mil e quinhentos litros de água”.

A economia garantida pela promotora, porém, tem se mostrado contraditória. Logo no início da implementação, por exemplo, o prefeito de Serrinha, Adriano Lima (MDB), revelou a um jornal local que o município teve de gastar mais com a merenda escolar. “Não sei ao certo em quanto aumentou (…) E esse aumento do custo se deu pela quantidade que foi maior e pelos próprios produtos da agricultura familiar, mais caros de serem produzidos”, declarou.

Oposição

Na época da implementação do programa, além da oposição do FNDE, várias outras entidades e organizações de saúde se posicionaram contra. O Conselho Regional de Nutricionistas da Bahia chamou a iniciativa de “arriscada e não compatível com a realidade regional”. Para o Conselho Federal de Nutricionistas, a medida é ainda mais perigosa: pode comprometer o desenvolvimento de crianças em idade escolar”.

A Sociedade Brasileira de Pediatria também emitiu nota na qual considera preocupante a retirada de um grupo alimentar tão importante como a proteína de fonte animal.

Contra todas as evidências científicas desses grupos, de anos de estudos, a promotora disse, entre outras coisas que a reportagem se comprometeu a não publicar, que, “talvez, exista um desajuste de informação quanto ao que hoje diz a ciência com relação à eficiência nutricional de uma alimentação à base de vegetais”. “É um descompasso desses críticos no que, modernamente, se sustenta sobre viabilidade nutricional, numa alimentação a base de vegetais”.

Na verdade, substituir a proteína animal pela proteína vegetal não gera o mesmo resultado para o organismo. Além de ser fonte de inúmeros nutrientes para o corpo, a carne, por exemplo, comprovadamente, possui a maior biodisponibilidade de ferro. “É difícil o alimento que a criança consiga suprir todas as suas necessidades. E dos alimentos, o que comprovadamente tem a melhor biodisponibilidade de ferro são os de proteína animal, principalmente a víscera, principalmente o fígado”, explica o pediatra Mauricio Marcondes Ribas, corregedor-geral do CRM-PR.

A disponibilidade de alguns micronutrientes como o ferro é diferente entre alimentos de origem animal e vegetal. É o que explica a pediatra Denise Myakawa: “O ferro presente em alimentos de origem animal (ferro heme) é melhor absorvido pelo organismo que o ferro presente em alimentos de origem vegetal (não-heme). Outro exemplo é o cálcio, presente principalmente em leites e derivados e importante para o desenvolvimento ósseo da criança”, diz.

“A absorção do cálcio presente em um copo de leite é maior, por exemplo, que o presente em vegetais como o brócolis. Para exemplificar, para a absorção de uma mesma quantidade de cálcio presente em um copo de leite deve-se ingerir aproximadamente 400g de brócolis”, continua.

Valdiceia Leão, coordenadora do projeto na região de Biritinga, reconhece que o projeto encontrou resistência de famílias: “Realmente, houve um impacto, até pela questão da cultura, houve um choque, teve reação”, disse. “Nós dissemos aos pais que seria gradativo e que, ao passo que a criança ia comendo, ia se adaptando”. Com orgulho, ela conta que sua filha, de 9 anos, foi “gerada” na escola sustentável. “Ela não come nada de doce, eu não dou, não deixo de jeito nenhum. E ama verdura. Não come carne, eu não dou carne, nem frango”.

Gazeta do Povo

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